Por que voltei...



 

 

O portão

 

 

    Solto as malas quando chego junto ao portão de ferro batido, o enferrujado pelo passar dos anos levando sol e chuva. Além dele, consigo ver a vegetação, que um dia foi um jardim, se estender até os batentes da porta de entrada. Desvio meus olhos para a janela do meu antigo quarto com os vitrais quebrados e a lembrança das inúmeras tardes sentada sobre ela me volta e quase consigo sentir o cheiro de bolo de fubá da minha mãe encher a casa e chegar até mim. Um arrepio me sobe pela coluna junto com o nó que fecha minha garganta e por muito pouco não me deixo cair de joelhos com a emoção que me toma. Achei que, a essa altura, já teria superado a minha partida traumática de tantos anos atrás, mas como esquecer se no meu peito os motivos para partir ainda são uma ferida aberta que pulsa e sangra, mesmo que tenha aprendido a disfarçar bem com o passar do tempo?

    Balanço a cabeça para espantar as lembranças da última vez que eu passei por essa entrada e pego o molho de chaves que me foi entregue pelo tabelião. Coloco-a na fechadura e giro ouvindo o clique que faz meu coração trepidar no peito. Escancaro o portão e entro atravessando as ervas daninhas que tomaram conta até a porta da frente. Paro outra vez para puxar uma longa respiração, o medo de como encontrarei a casa por dentro me toma, mas não vim até aqui para desistir. Se está se perguntando o que estou fazendo nesse lugar que me traz uma dubiedade de emoções, respondo-lhe que estou pagando uma promessa.

    Prometi à minha falecida mãe que viria aqui e veria a nossa velha casa antes de decidir vendê-la, ou não. E se tem algo que aprendi com dona Neide, é que promessa feita é certeza de cumpri-la. Assim que abro a porta, a primeira coisa que me bate é a falta de vida que há nela. Tudo bem que já se foram dez anos desde que mamãe se mudou para a cidade vizinha para morar comigo após a morte do papai, porém, a falta do cheiro tragante do seu cigarro de palha, ou a mistura de condimentos que mamãe usava para preparar as refeições ainda é como um grande soco no estômago. Aperto a mão na minha barriga sentindo a dor do vazio e, por um segundo, sou transportada de volta àquela tarde...

    — Fora! — papai grita, pegando minhas malas e jogando de qualquer jeito sobre a pequena roseira que mamãe cuida com tanto esmero. — Se tu quer ser o mancebo daquele sem rumo, faz, mas esquece que tu tem pai e mãe.

    — João! — mamãe choraminga, e ver as lágrimas dela me abala. Sei como está dividida entre as duas pessoas que ama, mas que bela megera é a vida, num é mesmo?

    “Também estou entre os amores da minha vida, mãe!”, penso olhando para ela com pesar.

    — Eu não sou mancebo dele, pai, nós só... — Como explicar ao meu pai que o que estava fazendo não é como ele pensa?

    Venâncio, o sem rumo como ele diz, é meu namorado e um excelente pintor, mas aos olhos dos outros é um sem futuro já que não quer viver atrás de uma mesa de escritório, mas viver da sua arte.

    — Tu não tava só com um lençol sobre tua vergonha enquanto ele fazia sei o quê? — Fecho os olhos e nego com a cabeça.

    — Não... — sussurro, mas ele me corta.

    — Não me interessa, fez tua escolha e fiz a minha!

    Com isso, ele declara e volta para dentro batendo a porta com força, em um piscar de olhos mamãe está com os braços a minha volta pedindo que eu tenha calma, que deixe o papai se acalmar antes de voltar a conversar com ele, mas não será assim. Ela sabe que por ser filha dele, tenho a mesma envergadura orgulhosa que me faz ficar de pé, recolher minhas malas e com um beijo em sua bochecha sair pelo portão parando um segundo depois, mas jamais olhando para trás.

    Sinto meu telefone vibrando enquanto volto das minhas memórias dolorosas e entro na casa de uma vez. O nome de Venâncio brilha na tela e sorrio pensando quão errado papai estava. Ele, de sem rumo não tinha nada, se tornou um grande artista e me levou ao redor do mundo entre exposições e me fez uma mulher honrada, casamos e mesmo agora, vinte e cinco anos depois, ainda sou sua maior fonte de inspiração.

    — Alô? — atendo tentando controlar o tremor na minha voz.

    — Como você está? — A suavidade na voz grave é como um abraço acolhedor no meu corpo.

    — Ainda não sei — digo com sinceridade. — Vou terminar essa tortura e voltar pra casa o mais rápido que puder.

    — Luiza...

    — Não há nada aqui para ver, querido, a não ser uma casa empoeirada e precisando de uma reforma que não perderei tempo gerenciando.

    Apesar das palavras que saem pelos meus lábios, um aperto se faz no meu peito. Por que a ideia de outras pessoas vivendo aqui me perturba?

    — Como queira, se precisar de mim basta falar e eu vou — declara e não consigo segurar o riso de alegria por ele ser muito mais do que esperei ou desejei.

    — Eu te amo!

    — Apesar de todos esses anos? — brinca, e gargalho.

    — Por cada um deles!

    Desligo e me volto para a sala de móveis antigos e empoeirados, caminho até a estante e tomo uma respiração surpresa. Por toda ela há fotos minhas, desde algumas amareladas da infância até uma que tirei no dia que os gêmeos nasceram dez anos depois que parti, há até uma do meu casamento. Meus olhos se enchem de lágrimas com as perguntas que nunca serão respondidas. Pego o último porta-retrato e abro, sabendo que mamãe tinha o hábito de datar as fotografias, mas a caligrafia que há nela é do papai e lê-se: “Minha menina agora já é mãe! 20 de maio de 1990.”

   Não consigo respirar e cambaleio para trás com os olhos ardendo, cada vez que mais lágrimas  transbordam deles. Tateio às cegas até chegar ao meu antigo quarto e outra vez não sei o que pensar.     Tudo está igual, é como se eu tivesse saído ontem daqui, não vinte e cinco anos atrás. Por estar com as pernas meio tremulas sento na cama e as molas rangem, um suspiro tremido me escapa enquanto olho para tudo ainda sem acreditar. Algo na minha visão periférica me chama a atenção, e quando viro para a mesinha de cabeceira, vejo o monte de envelopes amarelados presos por uma fita de cetim empoeirada. Estendo a mão e noto que todos estão lacrados, desfaço o laço e, quando passo um por um, noto que eles estão datados no cantinho. Pego o de cima da pilha que data de semanas antes do falecimento do papai e meu aniversário. Rompo o lacre e ajusto os óculos sobre o nariz para ler as palavras.

    Querida, Luiza,

    Hoje é seu aniversário e penso que mais um ano se passou sem que eu lhe diga como sinto sua falta e não há ninguém a quem culpar por isso do que a mim mesmo.

    Sua mãe me diz que sou como burro manco por deixar meu orgulho levar a melhor sobre mim. Talvez eu seja mesmo um, por ignorância deixei meu tesouro mais precioso se afastar de mim e hoje, tantos anos depois, não sei mais como fazer para reverter isso.

    Esta é mais uma carta que lhe escrevo sabendo que nunca enviarei, mas gosto de pensar que as recebe e sente o grande amor que lhe tenho desde o momento que foi colocada em minhas mãos ainda tão pequenina e chorosa, ali meu mundo se tornou mais iluminado, porém não visualizei esse sentimento quando te coloquei para fora.

    Não sou digno do seu perdão. Esqueça, estou indo à Vila Boas essa tarde e vou dizer tudo isso pessoalmente, já passou da hora de lhe abraçar mais uma vez e dizer quão orgulhoso da mulher de fibra que se tornou e o quanto a amo.

    Até daqui a pouco!

    Releio a carta mais algumas vezes sem acreditar que seja real, ele... ele ia até mim aquele dia? Levanto e começo a andar pelo quarto refazendo os acontecimentos daquela data na minha mente: mamãe estava comigo para meu aniversário, estávamos finalizando a cobertura do bolo quando o telefone tocou e era do hospital para nos avisar que meu pai sofreu um AVC no portão de casa e estava hospitalizado.

    Corremos para lá, mas ele nunca acordou, os danos foram maiores do que o possível para a medicina reverter e, segurando sua mão, eu assistir os seus batimentos pararem. Naquela época eu não chorei, fiquei anestesiada, mas neste momento, sabendo que ele estava indo ao meu encontro, que aquele era nosso reencontro, meus joelhos cedem ante esse conhecimento e me deixo cair enquanto choro a perda do meu pai pela primeira vez e sinto todos esses anos de falta que ele me fez, mas me neguei a sentir.

    Não sei dizer quanto tempo fico nesta posição, chorando, apenas que, em algum momento, sinto uma paz me tomar e me ergo indo até a cama onde deito e permito que essa sensação perdure pelo tempo que me for permitido. E é assim que Venâncio e meus filhos, Alex e Andra, me encontram horas depois. Mesmo eu dizendo que não precisava, vieram para me ajudar a superar esse momento, é como se soubessem que algo grandioso estava para acontecer. Quando ainda abraçada a eles começo a rir, seus olhos descrentes me dizem que se preocupam que eu tenha enlouquecido.

    — Estou feliz por ter voltado — declaro e não me perguntam nada, apenas balançam a cabeça confirmando que entendem.

    Abraçada a eles, eu soube por que voltei, por que mamãe me fez prometer que viria aqui, ela sabia que se não fosse no seu leito de morte, a promessa nunca teria saído dos meus lábios e meu orgulho não me permitiria vir aqui e comprovar por mim mesma apesar das dores. Quando amamos alguém, esse sentimento perdura e podemos senti-lo ao nosso redor mesmo que aquele que amamos já não mais esteja no mesmo plano terreno que nós. Agora, ao fechar os olhos, percebo que já havia perdoado meu pai e aquele acalento que senti enquanto me desfazia em lágrimas era o seu amor por mim, enfim, sendo aceito por meu coração.


Fim 


Poema sem fim...

Se o mundo não fosse mundo

E eu pudesse lá, no fundo.

Dizer o que penso em voz alta.

Talvez eu sentiria a falta

Das minhas conversas silenciosas

Talvez eu ficasse nervosa

Pelas verdades que da minha boca saísse

Talvez eu virasse crendice

Ou um mito a ser batido

Talvez se eu não tivesse ido

E presenciado em primeira mão.

Como o mundo pode ser cruel

Deixando na boca um gosto de fel

A cada volta que ele dar

Talvez eu só queira um lar

Ou um abrigo nessa tempestade

Talvez eu acorde mais tarde

Desse meu devaneio sem nexo

Talvez nem seja assim tão complexo

Essa minha vontade de fazer valer o meu existir

Talvez eu precise apenas seguir

O comando do meu coração

Que ironicamente vive na contramão

E não se deixa levar por qualquer barganha

Talvez no fim ninguém ganha

E voltamos ao início da questão

Talvez se eu tivesse ouvido não

Pouco antes de ouvir o sim

Talvez se eu lutasse por mim

A luta teria um vencedor ao final

Talvez essa conversa me faça mal

E eu não tenha forças para parar

Mas é certo que preciso mudar

Se minha sanidade quiser manter.

Não questione minhas razões para juntar

tantas palavras assim sem pensar

Pergunte o que despertou em você

Que esperou até a última palavra chegar.

Talvez...

Comentários

Postar um comentário